A tristeza profunda causada pela partida de um dos nossos maiores, de um dos que está acima de nós, pode ser minorada pensando na sua vida exemplar, no seu trabalho único, na obra imensa que nos deixa.
O nosso camarada João Cravinho, o Eng. João Cravinho, como tantos de nós o tratávamos, com respeito e amizade, é uma personagem única do último meio século neste país. Não apenas pelas inúmeras funções que desempenhou e são conhecidas. Mas também pelo pensamento estruturado que desenvolveu e difundiu, pelas organizações que criou, pelo modo como compreendeu as estruturas da nossa sociedade, pelo sentido que deu à sua ação, pela maneira como via o planeamento e como encarou as mudanças necessárias de um país que o inquietava e com que se preocupava permanentemente.
Tinha em mãos um livro que se deseja quase acabado, o seu último livro, o seu regresso ao que sempre estudou: a produtividade. Não naquela aceção dos que fazem umas contas ligeiras e sem sentido para chegarem a um número que é nada. Mas para interpelar as estruturas económicas, as bases empresariais, as condições sociais de criação de riqueza, os modos como se usam os recursos, se mobiliza o trabalho, se reparte o rendimento gerado. E para, a partir daí, agir, planear, organizar. Foi um homem que sempre pensou a partir do que há de mais elevado e sempre propôs que atingíssemos o melhor que pudéssemos construir. São conhecidos os termos com que se qualificam as pessoas, as ações e as propostas com esta grandeza. Não preciso de as repetir aqui. Mas lembro o que fez e como fez.
Entrou para a grande administração pública para a qualificar. Na Divisão de Produtividade e Gestão do Instituto Nacional de Investigação Industrial. “Passei meses no norte do país a visitar fábricas, no começo dos anos 60, em 1962/63” disse numa entrevista. Ganhou aí “a noção de que o mercado é uma construção social”.
Quando entrou para o Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, “o que me interessavam eram as transformações estruturais, o planeamento de médio e longo prazo, o investimento e a produtividade, enquanto referencial para avaliar o sucesso das políticas. Por isso, já́ no final dos anos 70, interessei-me muito pelo desenvolvimento e inovação tecnológica. A questão fundamental era a transformação estrutural. Como se colocava a questão do mercado? O mercado é uma construção social manipulada e manipulável.”
O GEBEI-Grupo de Estudos Básicos de Economia Industrial tem um lugar central na sua obra. Criado em 1972, sendo João Cravinho diretor de planeamento da Secretaria de Estado da Indústria, foi por si dirigido para criar conhecimento, informação de base com qualidade, reflexão estratégica: “Com o objetivo de desenvolver e apoiar o debate público. Em primeiro lugar, proporcionando-o dentro da própria administração e, em segundo lugar, nas universidades e no espaço público.” Internacionalizou a sua atividade e ligou-se aos melhores. Ainda hoje, quando queremos discutir industrialização, organização empresarial, estruturas sociais e territoriais, é por aí que temos de começar.
Foi esse homem de conhecimento e pensamento profundos que serviu a democracia e lutou para a tentar tornar sistematicamente melhor. Nos governos, participando da melhor forma na construção da economia política da democracia, uma vez alcançado o dia luminoso de 25 de Abril, com a defesa do planeamento quando ele começou a cair em “desuso”, com a crítica de uma visão da integração europeia guiada por mecanismos apenas formais que empobrecem uns e enriquecem outros, pela recusa da austeridade como fórmula de poder desviante, pela discussão acertada do financiamento do Estado e da sujeição da sociedade à dívida pública, pela construção de um país inteiro, isto é, descentralizado, regionalizado, pela noção exata de que a corrupção e a falta de transparência mina as sociedades e coloca em perigo a ação pública.
João Cravinho, fundador da Causa Pública, membro do seu Conselho Estratégico, interveniente ativo no Primeiro Fórum, em outubro de 2023, falando sobre “Economia e desenvolvimento”, faleceu nesta quarta-feira, dia 16 de abril. A nossa associação relembra-o como um dos nossos maiores: agiu pela democracia e engrandeceu-a, compreendeu a economia como ninguém, lutou por uma sociedade capaz de criar valor e de o repartir, interpelou os poderes, contribuiu para a transformação estrutural, defendeu o Estado e a esfera pública, sabia o que é essencial para sermos livres e nos desenvolvermos, criou conhecimento que permite o debate público. Um democrata, um socialista, um intelectual profundo, um homem integralmente bom. Relembrá-lo-emos sempre.