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Foto: João M Almeida
Foto: João M Almeida

Abril, alegremente juntos

Ironicamente, o 25 de abril é mais produto nacional do que os nacionalismos emergentes que procuram desmontar o seu legado. A tendência para a autocratização de democracias maduras é tão transnacional como as maiores multinacionais.

O último ano trouxe muitas e justas celebrações dos 50 anos da conquista da liberdade. No plano nacional, a partir dos órgãos centrais da soberania, e pelo território inteiro, através de iniciativas e programas nas autarquias, comemorou-se o dia em que o país mudou de vida com imensa alegria. Revisitaram-se factos, valores, promessas. Fizeram-se balanços de tudo o que se conseguiu logo ali – pôr termo a uma guerra colonial, democratizar as vontades – e do que demoradamente se foi tentando fazer – construir um estado social precioso, apesar de tudo o que falta cumprir, e vencer uma desigualdade endémica, que passa de geração em geração, com os ressentimentos que ela alimenta.

Mas nesse mesmo ano em que a democracia portuguesa celebrou o seu cinquentenário, um calafrio atravessou-a. Com amarga ironia, pela primeira vez foram eleitos para a Assembleia da República 50 deputados arregimentados num partido de extrema-direita que faz política a destilar ressentimento e ódio aos outros – incluindo a Constituição e cada um dos pilares do regime.

À ironia desta coincidência há que responder, contudo, com outra que nada tem de coincidência. O 25 de abril é, muito ironicamente, mais produto nacional do que os nacionalismos emergentes que procuram desmontar o seu legado. A tendência para a autocratização de democracias maduras é tão transnacional como as maiores multinacionais. A corrosão da confiança nas instituições políticas e nos representantes políticos, na palavra que se diz e da promessa que se faz, é característica global de tempos que são tanto de pós-mentira como de pós-verdade pois, no fundo, nenhuma, verdade ou mentira, vale muito no discurso público hoje, onde quer que se esteja – cada vez menos face a face. E, se cada vez há mais partidos políticos que retomam linguagens xenófobas e racistas, além de formas de integrismo de um passado que foi pior do que o presente, o que se ouve são as mesmas palavras, os mesmos lemas, seja em húngaro, francês, italiano, holandês, grego, inglês dos Estados Unidos, inglês britânico, português do Brasil ou português de Portugal.

O 25 de abril de 1974 aconteceu numa quinta-feira em Portugal e foi louvado por esse mundo todo como uma coisa boa. Deixáramos de estar sós.

O 25 de abril responde hoje de dentro do regime, do seu consenso profundo, àquela tendência global para a manipulação e para a segregação generalizada, àquele “orgulhosamente sós” transnacional, passe a contradição, epidermicamente reactivo, que não cria nenhum tipo de chão. Os problemas que importam ao 25 de abril são os das vidas dignas das pessoas, a habitação, o trabalho, as suas liberdades e vontades, a sua participação no presente e na imaginação do futuro. É esse o chão do 25 de abril, é esse o chão que pisam todos os que o querem continuar. Tem muito significado que, em 2025, continuemos a querer estar orgulhosamente juntos na partilha desse chão.

Além disso, a convicção da paz que anima o 25 de abril responde a uma certa insensatez que vai infiltrando o senso-comum. Não faltam partidos e governos moderados a dar o tom bélico –  “marchar, marchar!” – para uma guerra europeia, se não mundial, enquanto encolhem os ombros diante de um genocídio imperdoável em Gaza. Temerários de um lado como se tudo estivesse ao seu alcance, impotentes do outro como se enfrentassem uma fatalidade divina. Certo é que, no tecido com que nos fazemos sociedade, somos todos nós a deixar entrar nos nossos quotidianos civis, como se fosse normal, a notícia das atrocidades que teríamos de poder parar. Em vez disso, habituamo-nos ao convívio obsceno do relato diário de um genocídio com o de quaisquer outras notícias. O 25 de abril fez-se para parar uma guerra. Desde então, em 50 anos, não pensámos a força militar senão ao serviço da paz. É nesse caminho que temos de perseverar, agora, como dantes, como quem diz “Abril sempre”.

O 25 de Abril de 2025 tem muito para dar. Responde ao reactivismo político que não vai à raiz de nenhum problema sério vivido neste país. Responde ao senso-comum político cada vez mais tomado pela vertigem do conflito. E tem a capacidade de continuar a ressignificar os 3 ‘D’ do programa do MFA. O ‘D’ de descolonizar, para enfrentar a persistência de um colonialismo recalcado que irrompe como racismo e xenofobia, a que não é estranho o discurso anti-imigração baseado em falsificações disseminadas sobre criminalidade, insegurança, desemprego, exaustão de serviços públicos. O ‘D’ de democracia, para lutar com palavras e vontades por uma relação mais igualitária e participada entre concidadãos – Montesquieu chamava à democracia o amor pela igualdade. Mas também uma relação mais soberana com o tempo. Não seremos soberanos do nosso presente enquanto não tivermos a liberdade de ler criticamente o passado e de projectar futuros. E, finalmente, o ‘D’ de desenvolvimento, que deve avançar no alfabeto para um ‘E’ de envolvimento, nestas sociedades cada vez mais desligadas, com cada indivíduo e cada grupo encerrados nas suas bolhas. Há uma comunidade, que é feita de pessoas mas também de ecossistemas, um planeta finito, de recursos exauríveis, que pede biodiversidade como diversidade cultural, uma comunidade de singularidades juntas que se amparam na aposta em se realizarem. É claro que, a cada ano que passa, o 25 de abril é um pouco menos memória e um pouco mais história. Não se trata de uma fatalidade, pois a escolha está noutro lado, além da memória e da história mas com elas, na persistência do 25 de abril no presente, no conjunto de aspirações e práticas que o fizeram em 1974, todos os anos metamorfoseadas, as palavras de ordem ressignificadas, os gestos reinterpretados, a mesma alegria que é força, a mesma festa firme e séria, de comparência juntos, e que continua a trazer os mais novos a descer a Avenida da Liberdade ou a juntar-se nos Aliados, ou noutra praça do país. Alegremente juntos.

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