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John Singer Sargent Nonchaloir 1911 National Gallery of Art
John Singer Sargent Nonchaloir 1911 National Gallery of Art

Elogio do Aborrecimento

O ócio é algo que devemos cultivar ou, como defende a sabedoria popular, a causa de todos os vícios? Não fazer nada é tão horrível que preferimos passar horas a ver conteúdos estupidificantes num telemóvel ou é algo que nos dá prazer e nos torna mais felizes?

Num estudo com mais de 10 anos[1], investigadores da Universidade de Virgínia, nos EUA, convidaram voluntários a ficarem a sós com os seus pensamentos. Através de 11 experiências, concluíram que estar só connosco próprios — mesmo que por poucos minutos — pode ser surpreendentemente desagradável e que, na ausência de estímulos externos, as pessoas procuram qualquer actividade, mesmo negativa, para escapar ao aborrecimento. Na experiência mais drástica, 67 % dos homens e 25 % das mulheres preferiam aplicar um choque eléctrico a eles próprios a permanecer sem fazer nada durante 15 minutos.
Mais ou menos na mesma altura, a Microsoft publicou um relatório em que analisava ao detalhe a actividade diária de um grupo de trabalhadores e comparava a sua satisfação em função da tarefa, do dia da semana e até da hora do dia. Uma das medidas era o tempo que os trabalhadores passavam numa tarefa antes de “saltarem” da janela (por exemplo, para darem uma espreitadela ao Facebook). Apesar de não ser esse o principal objectivo, acabaram por revelar que a capacidade de foco (attention span) média diante de um ecrã tinha diminuído de 2,5 minutos em 2004 para 75 segundos em 2012 (sendo de apenas 50 segundos, em medições mais recentes)[2].
Nenhum destes resultados deveria surpreender: havendo tanta coisa interessante no mundo e tão pouco tempo para viver, por que razão não haveria alguém de preferir um pequeno desconforto momentâneo, um ligeiro choque, a perder tempo?

O Ócio

Publicado no final do século XIX[3], o Elogio do Ócio, de Robert Louis Stevenson, defendia a importância de não se fazer nada de útil. Dizia que as pessoas que se entregam ao ócio não são necessariamente preguiçosas, podendo estar simplesmente ocupadas com coisas que não produzem dinheiro, mas que enriquecem a vida – como pensamentos, observações ou sonhos. Aliás, segundo Stevenson, só o tempo passado a olhar para o céu, a sós com os nossos pensamentos, nos poderá tornar interessantes e felizes. E encontrar alguém feliz seria muito mais valioso do que encontrar uma nota no chão.
Gostei muito de ler uma versão mais profunda (mas menos divertida) desta ideia, no livro “How to do Nothing”, de Jenny Odell[4]. Neste, começa por descrever a forma como a nossa atenção e o nosso tempo são bens tão preciosos, que existe uma indústria inteira dedicada a parasitá-los. O livro procura descrever diferentes formas de tentar resistir a esta “economia da atenção”, desde utopias hippies à simples observação de pássaros. Num exemplo particularmente interessante de conflito entre o que nos dá prazer e as convenções sociais, Odell descreve a instalação da artista finlandesa Pilvi Takala, The Trainee (2008). Nele, Takala interpretou o papel de uma estagiária na empresa de consultoria financeira Deloitte. Dia após dia, Tanaka chegava, sentava-se em frente a uma secretária vazia e não fazia nada. Quando inquirida, respondia estar a pensar e explicava vagamente que preferia fazer o seu “trabalho cerebral” na cabeça em vez de no computador. A presença de uma pessoa completamente ociosa no meio da enorme actividade aparente destas consultoras gerou tanto desconforto que, ao fim de pouco tempo, emails internos indicavam que ela tinha de ser despedida. Se não vão fazer nada, ou se “só” vão pensar, pelo menos disfarcem e aproveitem para jogar Candy Crush.

Auto-estima, auto-regulação e auto-eficácia

São termos que aprendi com colegas de psicologia. Auto-estima refere-se à forma como avaliamos o nosso próprio valor: é o sentimento de auto-valorização e respeito por si mesmo. Auto-regulação é a capacidade de gerir emoções, comportamentos e pensamentos de forma a atingir objectivos. Envolve o controlo dos impulsos e a perseverança e é tipicamente difícil de atingir antes da idade adulta, enquanto o córtex cerebral não atinge um certo nível de maturação. Auto-eficácia diz respeito à crença da pessoa na sua capacidade de fazer certas coisas ou de enfrentar desafios. Influencia tanto a motivação, como o desempenho. Como deverá ser óbvio, estes “constructos” influenciam-se mutuamente. Por exemplo, uma pessoa com elevada auto-regulação poderá ter mais sucesso no desempenho de tarefas, reforçando a sua auto-eficácia e auto-estima. De igual modo, alguém com baixa capacidade de auto-regulação – por exemplo, alguém viciado em raspadinhas -, poderá sentir-se menos motivado, afectando a sua auto-estima. Aliás, suspeito que todas as pessoas que se debateram com um vício sabem que o seu efeito mais pernicioso não é na carteira nem na saúde: é na auto-estima, na sensação de não sermos capazes de parar.
Apesar de não ser evidente em todos os estudos, parece existir cada vez mais consenso entre cientistas de que os smartphones e tudo o que eles trazem (redes sociais, jogos, infinite scroll) são muito viciantes e que, quanto mais tempo os jovens passam a olhar para eles, maior é a sua probabilidade de desenvolverem problemas de saúde mental. Se isto é verdade, a ideia da auto-regulação, ou de que devemos ensinar os jovens a ter uma utilização responsável, não faz grande sentido: limitamos o consumo de álcool, tabaco, jogo a dinheiro e outras actividades e substâncias aditivas a adultos, porque sabemos que as crianças ainda não são capazes de se regularem sozinhas.
Ou seja: damos às crianças um objecto muito viciante e dizemos-lhe que tem de limitar o seu consumo. A criança acorda de manhã e diz a si mesma que hoje não passará das X horas, que vai obedecer aos pais e ser forte. A criança chega ao fim do dia e não foi capaz de cumprir a sua própria promessa – não porque seja fraca, mas porque o seu cérebro ainda não está suficientemente desenvolvido para o fazer (aliás, esta auto-regulação é tão difícil, que até adultos ultrapassam diariamente os seus limites, auto-impostos ou almejados). Para além de achar que falhou, a criança ainda se sente, muitas vezes, tentada a mentir aos pais, por vergonha ou por medo de represálias – que muitas vezes passam por limitações ao acesso e reforço da sensação de dependência.

Políticas de Resistência

Voltemos ao ócio e à dúvida sobre se é algo que devemos cultivar ou, como defende a sabedoria popular, a causa de todos os vícios. Alguns cientistas têm tentado perceber se o “não fazer nada” é tão horrível que preferimos passar horas a ver conteúdos estupidificantes num telemóvel (e até a dar-nos choques) ou se de facto nos dá prazer e nos torna mais felizes, como defendia Stevenson. A resposta parece ser que depende: se o ócio é deliberado, é bom e faz-nos bem; se é imposto ou se não vemos alternativa (“não tenho nada para fazer”), é horrível e faz-nos mal. Também está descrita uma relação entre os efeitos do far niente e a auto-regulação, a auto-eficácia e a auto-estima: se estas são altas, o tempo de “ruminação”, pode ser muito útil e prazeroso; se estas são baixas, tudo é melhor do que estarmos presos nos nossos próprios pensamentos. Apesar de não ter encontrado esta relação assim explicitada em nenhum estudo, vou arriscar argumentar que existe uma relação causal e que se retro-alimenta: quanto mais tempo de qualidade pessoas com uma boa auto-estima puderem passar consigo mesmas, melhor para elas e para os outros à sua volta. Quanto mais tempo no infinite scroll, pior nos sentimos. E pode existir imensa actividade no não fazer nada: o aborrecimento, se bem cultivado, permite a imaginação, o pensar mesmo muito sobre alguma coisa, a arte, a observação.
Odell defende que a solução para um mundo cada vez mais rápido e produtivo não pode ser o isolamento eremita, nem o telefone como extensão do braço. Terá de haver uma terceira via, de resistência activa, que nos ajude a não fazer nada, quando é suposto estarmos sempre a fazer alguma coisa. Agrada-me muito esta ideia de resistência e mais ainda a ideia de que as políticas públicas podem servir para a facilitar. Da mesma forma que decidimos limitar diversas liberdades individuais em função do bem do Outro e do bem colectivo (não só impondo limites ao acesso aos vícios descritos anteriormente, mas definindo idade mínima para casar, proibindo a violência doméstica, ou obrigando a utilização de cinto de segurança), é certamente altura de pensar que tipo de políticas deveriam ser implementadas para fomentar a participação cívica e combater a economia da atenção. Alguns países começam a dar passos nesse sentido: a Austrália aprovou uma lei que proíbe o acesso de menores de 16 anos a redes sociais como TikTok, Instagram e Facebook. França, Itália e Dinamarca, estão a proibir a utilização de smartphones em todas as escolas, independentemente do nível etário. E cada vez mais países recomendam um uso moderado de apps, mesmo a adultos. Os argumentos passam muitas vezes pelos riscos para a saúde mental individual, mas raramente esta discussão toca num outro ponto, que me parece essencial e bastante mais colectivo: estaremos a condenar comunidades inteiras a sentir-se mal, porque não se conseguem auto-regular? Por outras palavras, poderá uma geração que se acha tão fraca que nem resiste ao TikTok, sentir-se suficientemente forte para tentar resistir ao fascismo?
Neste contexto, a invasão do Estado na esfera privada é perfeitamente justificada: como tantos outros vícios, este pode tornar-se num problema de saúde pública e de coesão social. Têm de existir defesas e alternativas que nos permitam aproveitar tudo o que pudermos fazer, ler e pensar no aborrecido tempo que nos sobraria (Jenny Odell também sugere a criação de mais parques e jardins.)
O pequeno ensaio de Stevenson começa com uma conversa entre Boswell e Johnson[5]. Diz o primeiro: “O ócio é fatigante.” Responde o segundo: Isto acontece, caro senhor, porque estando os demais ocupados, nos falta companhia; mas se todos fossem ociosos, nunca nos aborreceríamos; passaríamos o tempo a entreter-nos uns aos outros”.


[1] Wilson, Timothy D., et al. “Just think: The challenges of the disengaged mind.” Science 345.6192 (2014): 75-77. – https://www.science.org/doi/10.1126/science.1250830
[2] O primeiro estudo focava-se apenas num pequeno grupo de trabalhadores, com grande intensidade de trabalho em écran, não podendo os resultados ser generalizados à população em geral. Mas alguns destes resultados têm sido replicados noutros grupos e é cada vez mais aceite que existe uma relação negativa entre “tempo passado a olhar para telemóveis, principalmente sem grande propósito” e capacidade de atenção.
[3] Publicado em português pela Antígona, com tradução de Rogério Casanova.
[4] Publicado em português pela Casa das Letras, com o título “O guia para não fazer nada”.
[5] Não conheço o texto, mas deve ser um excerto da biografia “The Life of Samuel Johnson” (1791), de James Boswell.

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