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Papa Francisco 12 Maio 2013
Foto: Edgar Jiménez

Francisco, eu e nós

Reconheço a importância das suas declarações sobre a desigualdade económica, os imigrantes e refugiados, os abusos sexuais na Igreja, as posições contra a guerra e pela paz, os posicionamentos sobre o massacre em Gaza. Mas.

O Papa Francisco era sem dúvida um cool guy, um “tipo porreiro”, e alinhado na velha tradição humanista que parecemos andar a perder. Perdemo-lo ao mesmo ritmo acelerado da revolução fascizante por que o mundo está a passar. Com tantas personagens detestáveis habitando o espaço público e político mundial, todos sentimos a perda. Há demasiadas pessoas más por aí.

Muitas pessoas ao meu redor – ateias, relapsas do catolicismo, progressistas, de esquerda… – saudaram-no na sua morte, creio que por estas razões e começando pela bonomia simpática. Mas ao fazerem-no deram como que carta branca a toda a sua política. Eu não consegui sentir o mesmo com a mesma genuinidade. E isso preocupa-me. Há algo de errado comigo?

Provavelmente sim, mas creio que outra linha de raciocínio e emoção presidiu: olhei mais para o mesmo e menos para o diferente; e não comprei o argumento, que me parece mais uma desculpa tolerante, de que “aquilo é uma instituição muito difícil de mudar”. Atenção: sem dúvida que o é. Mas serve de desculpa? Tanto tempo depois – quer do seu início, quer do Vaticano II?

Reconheço, sim, a importância das suas falas sobre a desigualdade económica, sobre imigrantes e refugiados, a sua firmeza verbal na questão dos abusos sexuais na Igreja, as posições contra a guerra e pela paz, os posicionamentos sobre o massacre em Gaza. Mas.

Mas o que dizer sobre ter prosseguido a política de Ratzinger de ataque ao papão da “ideologia de género”, papão esse criado pelo Vaticano? E que tantos efeitos perniciosos teve na política que afeta as vidas de tanta gente (das barbaridades das “ordens executivas” Trumpianas ao ataque às aulas de cidadania em Portugal)? E o que dizer sobre a continuada exclusão das mulheres? Apesar de posições que soaram a campanha de convencimento das hostes no sentido de mudar essa exclusão, ela perdura, sem nenhum gesto de autoridade significativo numa Igreja que, afinal (e caso único) é também uma corporação, com hierarquia? E que dizer das palavras simpáticas dirigidas “aos homossexuais” (ai, essa expressão…)? Talvez colhessem junto de identidades complexas como a de “lésbica católica” ou “gay católico”, mas se a Igreja Católica é tratada como ator político universal – e é-o – a simpatia é demasiado parecida com a velha noção de “tolerância” e acaba, numa cambalhota performativa, por prosseguir a exclusão. Incentiva-a, na política e na sociedade civil, de facto. A revolução fascizante em curso inventou dois inimigos: a imigração e a igualdade de género e sexual. Não são acessórios, são centrais na retórica e na mobilização de ódio.

No mundo atual, algumas das suas posições iam contra a tendência fascizante atual, sem dúvida. E a sua argentinidade descontraída seduzia. Estes dois últimos elementos levaram a muitas simpatias de tanta gente à minha volta, ateia, de esquerda, etc. Mas eu não consegui sentir o mesmo, se quiser ser honesto. Até porque não basta repetir a platitude de que as religiões fazem o que bem entenderem, aderindo a elas quem bem entender. Não é assim com uma Igreja com a história e o poder político desta.

No nosso caso, o catolicismo cultural português tem pluralidade, brechas e pontos de fuga: por exemplo, os ditos católicos votaram pelo aborto, caso contrário este seria um país de ateus. Esse catolicismo cultural, tantas vezes já um “pós-catolicismo”, precisa de ainda mais abertura cultural: ao exemplo das vertentes reformistas de outras confissões religiosas, que incorporaram a igualdade de género e sexual. Então, sim, a Igreja Católica estaria contra-atacando a revolução fascizante. Bergoglio/Francisco tentou, e alguns dirão que tentou o que pôde. Eu fico com o gosto amargo de achar que deveria ter feito mais, como Chefe de Estado que foi. Como não católico, é nessa qualidade que avalio a sua política. Mesmo que tivesse gostado de ter tomado um café com ele.

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