Maria de Jesus Barroso, cujo centenário de nascimento se assinalou a 2 de Maio, tinha vinte anos quando a peça A Casa de Bernarda Alba estreou, finalmente, em Madrid, já Federico Garcia Lorca, o seu autor, tinha morrido há nove anos, fuzilado pelos franquistas, durante a Guerra Civil de Espanha.
Nesse ano de fim da guerra, a segunda que destruíra a Europa, Lisboa encheu-se de manifestações de apoio aos Aliados e Maria Barroso, então jovem atriz em ascensão no elenco do Teatro Nacional D. Maria II, desceu entusiasmada e apressada a manifestação organizada por Mário Soares, seu companheiro, já atentamente vigiado pela polícia política, que dava vivas e pedia liberdade em Portugal.
Nesse 9 de Maio de 1945, haveria a estreia no Nacional de Vidas sem Rumo, um novo texto de uma autora açoreana, Olga Alves Guerra, onde a atriz interpretava uma secretária, Elsa, um dos muitos papéis de segunda linha que a tinham tornado notada pela imprensa.
Três anos depois deste acontecimento a atriz haveria de estar no centro de uma das mais flagrantes reações da comunidade de estudantes quando, no final de uma cena dessa peça de Garcia Lorca, onde interpretava Adela, a filha mais nova, Maria Barroso pegava na bengala da mãe, interpretada por Palmira Bastos, e reclamava: “Acabou-se a prisão. Veja o que eu faço à sua tirania. Não dê mais um passo.” E quebrava a bengala, símbolo de todo o poder e opressão. “Ninguém poderá vencer-me!”, disse ainda, antes de sair. No final, a plateia composta por estudantes da Associação Académica de Coimbra haveria de estender as capas negras, Maria Barroso seria levada pela própria Palmira Bastos para receber os aplausos e diluir, assim, a fronteira entre a ficção e a realidade. Através da atriz, celebrava-se a liberdade.
Meses antes, quando o espetáculo se encontrava em digressão no Porto, um dos seus colegas, o ator Raúl de Carvalho, de uma geração anterior, procurou alertá-la para os limites e cuidados que um ator deve ter, guardando-se para implicação apenas no palco, sendo mais discreto na vida.
Maria Barroso conta, na biografia assinada por Leonor Xavier, Um olhar sobre a vida (Difusão Cultural, 1995): “Na altura em que apareceu o MUD, que foi um vento que varreu o país, [o ator Raúl de Carvalho] comprava-me os jornais, que eu lia avidamente, mas dizia-me: ‘Mariazinha, um ator não pode ser político. Um ator tem de estar longe disso tudo.’ E eu respondia-lhe: ‘Senhor Raúl de Carvalho, um ator, antes de ser ator, é um cidadão e um ser humano. Portanto, pode e deve tomar determinadas posições’. Porque eles não tomavam. Alguns até não simpatizavam com o regime, mas não tinham coragem de dizer”.
Longe estavam já as palavras de Isménia, irmã de Antígona, que interpretara um ano antes, também no Nacional, na versão do ambíguo Júlio Dantas, ao mesmo tempo autor, ao mesmo tempo censor: “Reflete nas consequências da tua loucura. Nós somos já tão desgraçadas que não devemos chamar mais uma vez sobre a nossa cabeça a ira dos deuses.“
Esta força, este exemplo, que se conhecia já nas leituras em saraus e sessões pelo país de poetas do Novo Cancioneiro Português perseguidos, nas conversas mantidas em segredo junto de quem mais tarde ajudaria a fundar o Partido Socialista, na participação ativa na vida resistente e de luta, fosse no Colégio Moderno ou no apoio social, haveriam de pesar no final dessa temporada coroada de sucesso por Adela e aquelas frases tão reveladoras: “Sinto-me capaz, com a ponta de um dedo, de domar um cavalo à desfilada!”. No regresso de férias, Amélia Rey Colaço, então à frente do Nacional, informava-a de que recebera ordens do Governo para não mais a contratar.
Para trás ficara Benilde ou a Virgem-mãe, imaginada por José Régio, peça vista por “comunistas, pré-comunistas, amigos e compagnons de route dos comunistas, todos com vinte e poucos anos, esgotando sessões, aplaudindo as aventuras psicóticas de uma rapariga que é virgem e que julga ser mãe, ou que vai ser mãe julgando que é virgem”, um texto “nada indicado para aquelas senhoras da Lapa ou aqueles comerciantes da Baixa que enchiam as salas”, como lembrava o encenador Jorge Silva Melo numa conferência da Fundação Mário Soares e Maria Barroso em 2021. À sua frente, uma carreira interrompida, um esforço derrotado, uma esperança tolhida.
Não fora o seu despedimento do Nacional, Maria Barroso teria sido, na temporada seguinte, a jovem Cândida de As Meninas da Fonte da Bica, de Ramada Curto, em cena quando o MUD Juvenil, por iniciativa de Mário Soares, propôs comprar a plateia do Nacional para uma “manifestação espontânea”, como então se dizia, em tempos de proibição de ajuntamentos, como apoio à candidatura presidencial do general Norton de Matos às eleições do início de 1949. A polícia estranhou tanto entusiasmo pelo teatro por parte de conhecidos militantes resistentes, mas quando a PIDE apareceu, já os lugares estavam vazios. Como não ver, neste gesto de Mário Soares, o romantismo da doce vingança pelo lugar retirado à sua mulher, nesta peça de um valente e exemplar republicano como era Ramada Curto, autor que há décadas expunha as falências do regime?
Maria Barroso só voltaria a pisar o palco do Nacional em 1984, para uma leitura de Frei Luís de Sousa integrada no filme Lisboa Cultural, de Manoel de Oliveira, feito para a televisão italiana. O mesmo realizador que, aliás, em 1975 convidara a atriz para ser então a velha governanta Genovena, na adaptação ao cinema de Benilde ou a Virgem Mãe. E a voltaria a chamar para Amor de Perdição (1979) onde, em breves duas cenas, criava com a sua presença enquanto Madre Superiora um filtro ético e sensível para a funesta e inevitável paixão da sua sobrinha Teresa, e para pequenas leituras em Le Soulier de Satin (1985), onde fazia um anjo.
Por essa altura, já Maria Barroso se havia feito eleger deputada, entre 1976 e 1983, prolongando um compromisso com o teatro e a cultura. As suas intervenções na Assembleia da República, enquanto deputada pelo Porto, Santarém e Faro, distrito onde nasceu. Há um poema sobre as gentes do Algarve que, no período tumultuoso entre Benilde e Adela, lê no filme Aqui, Portugal (1947), de Armando de Miranda, onde se incluem estes versos que também a definem: “forte no querer dos seus filhos, laboriosa e progressiva”. Palavras que atestam o compromisso imediato e exigente com o papel do teatro na reorganização do sentido estético, político e ético.
Este permanente desafio às condições que recusava deixarem defini-la, estão sublinhadas na sua Júlia, verdadeira protagonista do filme de Paulo Rocha, Mudar de Vida (1966), porque espelho de tantas mulheres que, então se dividiam entre o trabalho e a espera pelos homens, na guerra ou no exílio: “Vocês vão por aí fora e a gente que se governe com a dúvida. Com a canastra. Ouvir contar tanta coisa… Se fosse a falar também tinha muito a dizer.” A rodagem, no Furadouro, foi dura e ingrata. Na mesma altura, Mário Soares estava novamente preso, na cadeia de Caxias. As cartas que nunca deixou de lhe escrever, são eco das palavras de uma personagem presa a um destino por cumprir e imprimem no seu rosto a história de distância que vivia realmente: “Amanhã regresso ao Furadouro e não sei quando conseguirei vir de novo a Lisboa. O que eu desejo agora é despachar-me porque não estou lá tranquila, sabendo-te longe.”
Estas frases lidas assim, construindo uma biografia a partir de ficções, têm, com Maria Barroso, particular eco, pelo exemplo que quis fazer, sem modelos e tantas vezes sem chão. Como pode alguém que sabe ser vigiada, perseguida, limitada, não desistir? De que força é feita? E o que leva para as suas personagens, metáforas do seu quotidiano? O crítico Carlos Porto escreverá sobre a forma como Maria Barroso vivia, nos poemas, o que não podia ser no palco nem o país deixava que fizesse: “Apercebemo-nos de que a revolta, a indignação, os apelos às armas de certos poemas existiam apenas passivamente e que a voz da declamadora transmuta esses valores numa acusação viva à nossa própria consciência, quer dizer, transforma a poesia num ato de comunhão, concretiza o velho sonho de ‘a poesia feita por todos’ ”.
E se a mulher que espera pela chamada do seu amante em A Voz Humana, que Jean Cocteau escreveu e Maria Barroso interpretou em 1966, for ela própria? Depois de uma digressão pelo país, quando a peça chega a Lisboa a PIDE invadirá o Teatro São Luiz com bombas de mau-cheiro e a representação será proibida porque “a senhora acabou de assinar um documento a pedir a demissão do Senhor Presidente do Conselho”, como lhe disse a polícia. “Assim é difícil”, terá acrescentado a polícia, num dissonante lamento. Para Maria Barroso seria mais difícil não fazer. Como difícil seria não a ver, nessa “frágil mulher ao telefone [que] tentava, com amargura e impaciência, religar os fios partidos de uma vida”, como recordaria, muitos anos depois, o encenador Joaquim Benite, então jovem jornalista, na homenagem que o Festival de Almada prestou à atriz, em 2010: “A sua voz era a voz da perplexidade e da angústia da perda, a voz humana.”
Na mesma altura da Voz Humana, nunca desistindo, houve ainda a breve passagem pelo Teatro do Nosso Tempo, no Villaret, com uma outra Antígona, agora de Jean Anouilh, e O segredo, de Henry James, que deixará uma fotografia carregada de mágoa, de força, de dor e de presença, feita às pressas, entre a gestão do Colégio Moderno, as visitas à prisão, os recitais proibidos, os filhos a crescer e a vontade de continuar a dizer, como o fez num inquérito feito nesses anos: “Deixe-se circular livremente o ar, suprimam-se os entraves, os condicionalismos, as discriminações – encorajem-se as iniciativas modestas e as realizações mais ambiciosas dos artistas experimentados, ofereçam-se meios a quem os merece sem impor condições que não sejam as do estrito cumprimento dos deveres artísticos – e verão como o teatro ressurge. Não acreditam?”.
Maria Barroso continuou a acreditar, guardando “a esperança e a rebeldia que essa jovem e ardente artista então encarnava”, como escreveu Eduardo Lourenço recordando A Casa de Bernarda Alba quando a atriz, e tudo, morreu em 2015. Como nos primeiros versos de Ode à Liberdade, de Jaime Cortesão, um dos que já não se ouviram por entre os gritos e insultos dos esbirros contratados pelo regime para a impedirem de falar, durante o recital no São Luiz, tinha Maria Barroso 41 anos: “Quero-te, como quero ao ar e à luz/ Porque não sou a ovelha do rebanho”.

1966 - Maria Barroso numa cena do filme Mudar de Vida de Paulo Rocha
![Fotografia de Maria Barroso, da autoria de Francisco de Sousa Fernandes , para os programas do grupo Teatro do nosso tempo [c. 1965]. MNTD, MNT 198586-A](https://emcausa.org/wp-content/uploads/2025/05/maria-de-jesus-barroso-1024x683.avif)
Fotografia de Maria Barroso, da autoria de Francisco de Sousa Fernandes , para os programas do grupo Teatro do nosso tempo [c. 1965]. MNTD, MNT 198586-A

Maria Barros com Maria Amélia Mata em BENILDE OU A VIRGEM-MÃE de Manoel de Oliveira (1975)

Amélia Rey Colaço (Etelvina), Maria Barroso (Benilde) e Augusto de Figueiredo (Eduardo) em BENILDE OU A VIRGEM-MÃE apresentado em 1946 no Teatro Nacional D. Maria II

Maria Barroso (Adela) e Palmira Bastos (Bernarda Alba) em A CASA DE BERNARDA ALBA, apresentado no Teatro Nacional D. Maria II em 1948

Anúncio ao recital A VOZ HUMANA, apresentado por Maria Barroso no Teatro São Luiz a 14 Dezembro 1966

Capa de disco com gravações de poemas do Novo Cancioneiro Português, por Maria Barroso

Contracapa do disco com gravações de poemas do Novo Cancioneiro Português, por Maria Barroso