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"Power house mechanic working on steam pump" (1921) de Lewis W. Hine (1874-1940)
"Power house mechanic working on steam pump" (1921) de Lewis W. Hine (1874-1940)

O mundo do trabalho e os desafios cruciais da Esquerda

Para muitas pessoas, a verdadeira vida, aquela que merece ser vivida, só começa quando a jornada de trabalho acaba e quando, finalmente, recuperam a sua liberdade.

Chegados ao final do primeiro quartel do século XXI, vivemos ainda numa sociedade fundada no trabalho humano. O trabalho surge, para alguns, como a verdadeira essência do Homem, como um meio de realização pessoal e de expressão de si, como um indispensável meio de aumentar a riqueza do país e de aquisição de rendimentos para o indivíduo que o presta, como um meio, afinal, de ordenar o mundo. E, como é sabido, o trabalho consome grande parte da nossa existência desperta e influencia fortemente a nossa vida quotidiana fora dele, é um fator de consideração social e confere-nos um determinado estatuto sócio-económico. Dizem alguns, com razão, que nós somos muito mais do que o nosso trabalho, mas também não falta quem sustente que, em boa medida, nós somos o emprego que temos. Aliás, como assinala Alain de Botton, “a atividade profissional por que optámos é o elemento que define a nossa identidade, na medida em que a pergunta mais frequente que fazemos a alguém que acabamos de conhecer não é de onde vem ou quem são os seus progenitores, mas sim o que faz[1].

O trabalho constitui, pois, um vetor essencial das nossas sociedades. No dizer de Dominique Schnapper, “é a maneira de assegurar a vida material, de estruturar o tempo e o espaço, é o lugar da expressão da dignidade de si próprio e das permutas sociais. O tempo do trabalho profissional dá o seu sentido aos outros momentos da vida”[2]. Isto dito, também não deixa de ser verdade que o trabalho perdeu, nos últimos anos, alguma da centralidade social que detinha, designadamente no que diz respeito ao seu papel na formação da identidade pessoal – talvez porque cada vez é mais fácil perdê-lo e cada vez é mais difícil encontrá-lo, numa economia recheada de petits boulots ocasionais, intermitentes, precários…

Em qualquer caso, é inegável que a força de trabalho é uma qualidade inseparável da pessoa (do corpo) do trabalhador. Assim sendo, ao alienar a disponibilidade da sua força de trabalho, o trabalhador aliena‑se, de algum modo, a si próprio. O trabalhador tem como que “duas vidas”, a vida no trabalho e a vida fora do trabalho, uma vida profissional em que se encontra numa situação de heterodisponibilidade e uma vida extraprofissional em que recupera a sua autodisponibilidade. Aliás, para muitas pessoas, a verdadeira vida, aquela que merece ser vivida – dir-se-ia: a vida boa – só começa quando a jornada de trabalho acaba e quando, finalmente, elas recuperam a sua liberdade. Nas certeiras palavras de André Barata, “é um insulto à maioria dos assalariados sugerir que é pelo trabalho pago, esse que lhes leva a maior parte do tempo de vida em vigília, que se realizam individualmente. A esmagadora maioria das pessoas apenas se permite acalentar alguma realização no seu tempo de lazer ou depois da vida ativa, portanto, em oposição aberta ao trabalho assalariado, que apenas lhes serve para obtenção de rendimento”[3].

“O trabalho não é uma mercadoria”. Eis o princípio fundamental afirmado na célebre Declaração de Filadélfia, adotada pela 26.ª Conferência da OIT, no já remoto ano de 1944. Esta afirmação constitui, afinal, o fundamento normativo nuclear do Direito do Trabalho, significando o primado da dignidade do trabalho e de quem o presta sobre outras considerações, nomeadamente as que relevam da eficiência económica. Urge recolocar a dignidade do trabalho no centro da agenda política, lutando contra a “colonização economicista” deste ramo do direito, que faz parte do ideário neoliberal. É certo que, como observa Michael Sandel, “pessoas de diversas convicções ideológicas terão ideias antagónicas do que significa, para uma sociedade, respeitar a dignidade do trabalho, sobretudo numa época em que a globalização e a tecnologia, aparentemente inevitáveis, ameaçam miná-la”. Mas o autor conclui, a meu ver com inteira razão: “A forma como uma sociedade honra e recompensa o trabalho é crucial para a forma como define o bem comum”[4].

Em todo o caso, cumpre reconhecer que, na atual sociedade de consumo de massas, o evangelho do trabalho foi destronado pela valorização social do bem‑estar, do lazer e do tempo livre, orientando‑se as aspirações coletivas para os bens materiais, as férias e a redução do tempo de trabalho (pense-se, para dar apenas um exemplo, na discussão em torno da “semana de quatro dias”). O cidadão-consumidor vai prevalecendo, em cada um de nós, sobre o cidadão-trabalhador. E a ideologia hoje dominante exalta o freelancing, o empreendedorismo, a aspiração de cada qual a ser o seu próprio patrão, surgindo a noção de trabalho subordinado como algo fora de moda, passadista, contrário à autonomia que todos desejam. Trabalhar para outrem, obedecer a outrem, sujeitar-se a horários definidos por outrem, ser dirigido, controlado e sancionado por outrem, tudo isto suscita, dir-se-ia, resistência, quase que uma rejeição cultural, sobretudo entre os jovens, que olham para o trabalho subordinado como um fenómeno do século passado.

Não falta, por isso, quem proponha superar a “gramática da subordinação” no contrato de trabalho, tentando conjugar a persistente autoridade patronal com a autonomia do trabalhador e reconhecer, por esta via, maiores margens de liberdade a este – ainda que o trabalhador seja sempre controlado e vigiado pelo empregador, quanto mais não seja através da gestão algorítmica do trabalho, a mais de ser pressionado pela necessidade de cumprir os objetivos traçados pela empresa, o que, na prática, acaba por tornar ilusória muita da sua autonomia.

Creio que a Esquerda encontra, aqui, muitos desafios cruciais. Reafirmar valores clássicos, como a luta pela dignidade da pessoa que trabalha, o que pressupõe estabilidade no emprego e salário decente; colocar-se na vanguarda da luta pela libertação do trabalho, pela conquista de mais espaço e tempo para a vida extraprofissional, liderando, por exemplo, a batalha pela “semana de quatro dias” e vendo no teletrabalho, mais do que uma ameaça, uma esperança; lutar pelo direito efectivo à “desconexão profissional”, etc. Ser capaz de manter vivo e atuante o Direito do Trabalho, o que implica modernizá-lo e adaptá-lo aos complexos desafios colocados pelas novas formas de trabalhar, próprias da era digital em que vivemos – pense-se, desde logo, no trabalho prestado no âmbito de plataformas digitais, cujo “modelo de negócios” assenta, um pouco por toda a parte, numa estratégia de evitamento do Direito do Trabalho, assim como na necessidade de garantir que o “novo patrão” representado pelo algoritmo funcione em moldes transparentes, explicáveis e não discriminatórios –, sem permitir que este ramo do direito se empresarialize e deixe de ser guiado pelo princípio de proteção que, desde o início, o anima. Cumprir o generoso e sempre atual projeto inscrito na Constituição da República, no que aos direitos fundamentais dos trabalhadores diz respeito. Não endeusar o mercado, ao jeito neoliberal, mas, pelo contrário, ser capaz de articular o mercado com o trabalho – não para sujeitar este último às exigências daquele, mas para regular aquele tendo em conta as necessidades deste. E, também, sem endeusar o trabalho, porque, afinal, as pessoas trabalham para viver, não vivem para trabalhar.


[1]Alegrias e Tristezas do Trabalho, Publicações Dom Quixote, 2010, p. 118.
[2]Contra o Fim do Trabalho, Terramar, Lisboa, 1998, pp. 18-19.
[3]E se parássemos de sobreviver? Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo, Sistema Solar, Documenta, Lisboa, 2022, p. 42.
[4] A Tirania do Mérito – O que Aconteceu ao Bem Comum?, Editorial Presença, Lisboa, 2022, p. 239.

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