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Postal do Terreiro do Paço. Colecção particular de Luís Bayó Veiga
Postal do Terreiro do Paço. Colecção particular de Luís Bayó Veiga

Os malefícios do curtoprazismo

Os primeiros-ministros transformaram-se em mestres do curto prazo, dos pacotes de anúncios de medidas milagrosas e inaugurações salvíficas. Faltam-nos visões de futuro, estratégias consequentes, orientações que tracem caminhos.

Há pouco mais de um ano, em campanha eleitoral, a AD criou a ilusão de que os problemas do Serviço Nacional de Saúde, que são estruturais, poderiam ser resolvidos em pouco tempo, com um pacote circunscrito de medidas. O mesmo discurso foi tentado sobre outras áreas como a da habitação, ou a da educação.

O denominador comum a esta visão miraculosa da solução de problemas é a difusão de que estes ocorrem porque os governos incumbentes são incompetentes e mudanças de pessoal político são a mola impulsionadora das soluções necessárias. Mesmo quando a mesma força política ganha eleições o passo é tentado, com a ideia de que os problemas que persistem de legislaturas anteriores se resolvem com mudanças de protagonistas.

Implícita nesta visão está uma lógica continuista de curto prazo, que cria a ilusão de movimento político, gera miríades de medidas, mas não pensa, não produz, nem corrige estratégias com efeitos de médio e longo prazo.

Mas há momentos em que o país tem de ser sacudido por ideias de mudança estruturadas e com futuro. Nunca é demais lembrar que o que transformou o 25 de abril de um golpe militar numa revolução foi a sua profunda ambição programática, expressa no Programa do MFA, de descolonizar, democratizar e desenvolver o país. Nestes três verbos de ação encerrava-se uma mudança estrutural que nos trouxe até onde estamos, num Portugal europeu, descolonizador e descolonizado, democrático ainda que com instituições com fragilidades visíveis e, quando comparado com o de 1974, profundamente desenvolvido.

Parece longínquo um país em que era minoritária a percentagem da população com abastecimento de água no domicílio, mas esse era Portugal Continental em 1974. A última epidemia de cólera, por coincidência tendo o seu primeiro caso identificado no dia 24 de abril de 1974, ocorreu num país em que “em virtude da incapacidade financeira da grande maioria das Câmaras Municipais do País para fazer face aos elevadíssimos dispêndios, resultantes da execução de obras de infra-estruturas relativas às grandes linhas do saneamento do meio (abastecimento de água potável, disposição de águas residuais e de lixo)”, a Comissão de Luta contra a Cólera, nomeada pelo governo, propunha em 1971 medidas de curto prazo, paliativas. Na segunda metade da década de setenta o país endividou-se – santa dívida – para construir as infraestruturas que antes eram impensáveis.

Mas, em particular desde o grande abanão estrutural associado ao processo de integração europeia, a ideia de que a política se faz pela indução de transformações de médio e longo prazo esmoreceu. Os governos de Cavaco Silva destruíram laboriosamente a capacidade de planeamento do Estado, nunca reposta nos governos subsequentes. Em muitos domínios, falar em intervenção pública transformadora foi sendo cada vez mais associado a estatismo, esquerdismo, quiçá protocomunismo.

Há notáveis exceções neste percurso, nomeadamente nas políticas sociais. A “paixão” de António Guterres iniciou uma radical expansão da escolarização que recuperou, no fim do século passado, o século que se tinha perdido com o fascismo e com as hesitações na democratização da educação nas primeiras décadas depois da revolução.

Houve sempre políticos com visão. Faleceu-nos recentemente um deles, João Cravinho, que viu bem a necessidade de política industrial em 1975, como a necessidade dela na entrada na União Europeia ou a da regionalização, que morreu embrulhada num cozinhado com as mãos de Marcelo Rebelo de Sousa ao serviço do centralismo que discretamente nos governou.

Mas o curto prazo sufoca-nos. A leitura do modo como se estruturam vários dos programas eleitorais nesta campanha eleitoral, como catálogos de promessas com um slogan unificador não deixa grandes dúvidas. A organização dos debates entre candidatos em torno de medidas cirúrgicas e concretas, que se julga ser o que os portugueses querem saber dos partidos, amplia-o. Sabemos mais sobre as prendas de um partido aos bebés ou o valor de salário mínimo que outro propõe do que de qualquer visão que qualquer deles tenha.

Os primeiros-ministros dos tempos recentes, com António Costa no topo, transformaram-se em mestres do curto prazo, dos pacotes de anúncios de medidas milagrosas e inaugurações salvíficas. José Sócrates e a sua visão da transição energética é, neste quadro, o outlier de mérito.

Faltam-nos visões de futuro, estratégias consequentes, orientações que tracem caminhos. Mesmo os momentos que requerem uma visão, como aconteceu com a pandemia, terminam em catálogos de medidas, que reembrulham o que já se pensava fazer e não estruturam novas visões do que há que desenvolver. A discrepância entre a visão de António Costa Silva, pense-se o que se quiser dela, e o cardápio do PRR é um dos últimos grandes afloramentos dessa nossa doença política.

Mas, voltando ao Serviço Nacional de Saúde e à política de habitação, é certo que nenhum paliativo milagroso resolverá problemas que exigem abordagens estruturais. E é também certo que tem razão quem diz, noutro campo, que precisamos de uma política industrial.

Se vão responder-me, como ouço frequentemente, que a política se faz a curto prazo e se vão citar Keynes, dizendo que a longo prazo estamos todos mortos, não esqueçam que o que ele tinha em mente em 1924 é o oposto do que normalmente se associa à sua citação. Ele queria que os governos interviessem nas crises para aliviar sofrimento desnecessário, não esperassem pelo reequilíbrio de longo prazo dos mercados. E, já agora, foi ele um dos arquitetos das mudanças visionárias e de longo prazo que nos deram os Acordos de Bretton Woods, um edifício que está a ser desfeito por alguém que não tem nenhuma visão do seu papel no mundo.

O curtoprazismo é míope e deixa-nos cada vez com mais problemas. Temos que arranjar medicina que cure dele a nossa política.

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