As grandes crises revelam os grandes líderes, de cuja sabedoria e coragem depende a sobrevivência dos Estados. Contudo, isso apenas acontece quando os povos têm a sorte e a capacidade de os produzirem. A guerra da Ucrânia, que já entrou no seu quarto ano, colocou o país perante a maior crise existencial de toda a história portuguesa, pois é a primeira vez que Portugal tem um governo que se deixou, com entusiástica estultícia, enrolar num confronto com a Rússia. Um envolvimento totalmente contrário ao interesse nacional mais elementar, o salus populi suprema lex esto (seja a salvação do povo a lei suprema), imortalizado no “De Legibus” de Cícero.
Nem os fanáticos que queriam declarar guerra ao império britânico, na sequência do Ultimato de 1890, nem o furioso Afonso Costa, colocando Lisboa a ferro e fogo em maio de 1915, para enviar, por decisão unilateral, milhares de soldados analfabetos para a Flandres, se comparam à façanha do mesquinho consenso nacional que vai de António Costa a Rui Tavares, numa contemporânea demonstração da veracidade da tese de Unamuno, que considerava ser Portugal um país de suicidas. O que continua em causa é a possibilidade de Portugal ser destruído num conflito total com a Rússia, o país com o mais poderoso arsenal nuclear do planeta.
Estamos a falar de acontecimentos vertiginosos, desde a chegada de Trump à Casa Branca. Vejamos, apenas, algumas das dimensões mais permanentes, neste quadro de incerta mudança.
Primeira. As negociações de paz, iniciadas por Trump com a Rússia, são boas notícias para os povos da Europa e do mundo. Afastam, pelo menos provisoriamente, o pior cenário, para onde estaríamos a rumar caso a linha de escalada bélica seguida por Biden tivesse prosseguido. Essas negociações, onde nem Zelensky nem a UE contam, revelam a justeza dos analistas, entre os quais me encontro desde sempre, que consideraram esta guerra como uma guerra de procuração (proxy war) dos EUA contra a Rússia, usando o território e o sangue ucranianos como instrumentos. Bruxelas protesta, porque Trump deixou cair o véu de Maia, a cortina ilusória, que fazia do apoio da UE à Ucrânia um assunto de direito internacional. Na verdade, tratava-se da prova de que os nossos governantes europeus não hesitam em sacrificar a qualidade de vida e a segurança dos seus povos para servirem o império americano e o seu desígnio persistente de fragmentar a Rússia. O caso mais aberrante de autoflagelação europeia é o da Alemanha, quando o governo de Scholz tudo fez para manter a lealdade canina com Washington, imolando para isso a qualidade de vida e a saúde económica do seu próprio país.
Segunda. As perspetivas de “paz imperfeita”, mil vezes melhor do que a continuação do conflito, só foram possíveis, para além das mudanças em Washington, pela clara superioridade militar das forças convencionais russas, apesar da valentia das tropas ucranianas e das correntes inesgotáveis de material bélico recebido dos países da NATO ao longo destes três anos. Os EUA nunca acreditaram, ao contrário da ignara arrogância de Bruxelas, que a máquina de guerra russa poderia ser derrotada no plano convencional. Como o secretário da Defesa Lloyd Austin afirmou, logo em maio de 2022, o objetivo dos EUA era o de fazer “sangrar a Rússia”, enquanto Kiev tivesse capacidade para o fazer. No cenário, altamente improvável, de as tropas de Kiev, com o apoio de “voluntários” ocidentais, se aproximarem de uma derrota das forças convencionais russas, Moscovo não se renderia. Faria o que a sua doutrina há décadas promulga: escalaria ao uso limitado do nuclear, para obrigar o inimigo a pensar duas vezes antes de prosseguir até à guerra total. Por outras palavras, a vitória convencional e limitada da Rússia, parece ter salvo os povos da Europa de serem vítimas da irresponsabilidade estratégica dos seus dirigentes.
Terceira. A paz que está a ser negociada só poderá ser duradoura se se traduzir num tratado que defina as regras do jogo no sistema internacional europeu, pretensão que a Rússia sempre perseguiu, mesmo desde os tempos de Gorbachev. Há, contudo, dois obstáculos no caminho. Por um lado, aquilo que prevalece no discurso europeu (com apoio da administração Trump) é a ideia de a UE fazer da corrida armamentista o novo objetivo estratégico (rasgando e substituindo o famoso Pacto Ecológico, onde a minha derradeira ingénua credulidade se esgotou). A Rússia jamais permitirá que uma nova guerra seja preparada à sua vista, sem nada fazer. Por outro lado, Trump está a jogar perigosamente não só com os seus aliados, mas também com o próprio aparelho de Estado federal e com alguns dos poderosos interesses nele instalados. Considero bastante provável (sobretudo após os efeitos desastrosos da sua guerra tarifária mundial) que um atentado contra Trump, desta vez bem-sucedido, possa incendiar uma segunda guerra civil americana, cujas consequências são totalmente imprevisíveis.
Quarta. Se os EUA de Trump quiserem levar até ao fim a sua aparente aposta no calar das armas na Ucrânia, impondo-a através da conclusão das relações bilaterais com Moscovo, só um milagre poderia impedir as forças centrífugas dentro da UE de prevalecer. Com o fim da guerra na Ucrânia os governos europeus perderão a frágil cola que os une e o bode expiatório, ocultador da sua incompetência e seguidismo em relação à administração Biden, responsável por uma avalanche de consequências económicas e sociais negativas. Os sacrifícios dos povos europeus ainda estão no seu início. A recessão alemã, em aprofundamento, chegará também a Portugal, Espanha e outros campeões do belicismo. A desordem tarifária de Trump ajudará a complicar ainda mais a situação geral. O esforço desesperado da Alemanha, através de Ursula von der Leyen e Friedrich Merz, com o seguidismo servil do secretário-geral da NATO Mark Rutte, para salvar a indústria metalúrgica e automóvel alemã através de um potlatch económico e financeiro, transformando a economia europeia numa suicidária economia de guerra, não passará sem luta nas ruas das cidades europeias. Há demasiado sofrimento social acumulado. Basta ver o estado lastimoso do que sobra do Estado social em Portugal, bem como o modo como todos os partidos de governo (PS, PSD e CDS) transformaram o nosso país no campeão da OCDE em inacessibilidade à habitação.
Quinta. Para um Estado quase milenar como Portugal, o falhado teste da guerra da Ucrânia, revela que as atuais elites portuguesas (elites pelos lugares de mando que ocupam, não pelo mérito no seu exercício do poder que esses lugares oferecem) perderam totalmente a prioritária perceção de perigo para o bem comum, que é a base de toda a política digna desse nome. O atual sistema nacional de partidos habituou-se a seguir incondicionalmente as instruções de uma União Europeia que afogou o sonho federal dos Pais Fundadores na ambição mesquinha e pessoal de uma nomenclatura medíocre, que há muito governa arbitrariamente, espezinhando os tratados fundadores.
Enquanto as placas tectónicas da (des)ordem internacional se movem ameaçadoramente, em Portugal discute-se uma empresa de sala de estar de um líder de fação, Luís Montenegro, que chegou a primeiro-ministro. O que está em causa num futuro não muito distante não é apenas a viabilidade do regime inaugurado pelo 25 de abril de 1974. Na encruzilhada que se abre no nosso horizonte coletivo, arrisca-se a própria continuidade histórica de Portugal, como entidade física e moral.