A fixação dos chamados “serviços mínimos” aquando da realização de greves voltou a ser notícia devido à paralisação dos trabalhadores da CP e à decisão tomada sobre esta pelo tribunal arbitral. Tendo os sindicatos alegado que a fixação desses serviços mínimos poria em causa a segurança dos utentes dos serviços que teriam de ser realizados ao abrigo dessa figura legal, o tribunal deu-lhes razão e a greve será assim realizada com a paragem total dos serviços ferroviários por um período de vários dias, levando a que dezenas de milhares dos seus utilizadores fiquem sem alternativa adequada de transporte.
Não se contesta a figura legal dos “serviços mínimos” e muito menos o direito dos trabalhadores à greve. Nem cabe aqui analisar a justeza da luta dos trabalhadores da CP. No entanto, convém refletir sobre o entendimento que o tribunal arbitral teve da situação alegada pelos sindicatos e a que deu acolhimento. Aliás, compreende-se esta posição do tribunal tendo em conta o que se verificou aquando da redução dos serviços de transporte durante as primeiras semanas de confinamento devidas à COVID 19 ou quando se procedeu ao aumento da oferta no serviço ferroviário na margem sul do Tejo, onde a sobreocupação das estações e dos comboios conduziu a situações de difícil gestão e de alguma perigosidade para os passageiros afetados. A questão é outra.
Comecemos por analisar a definição de “serviços mínimos”. De acordo com o diploma que os institui, os “serviços mínimos” em caso de greve podem ser decretados quando se tratar de serviços essenciais que devem ser garantidos nessa situação porque satisfazem necessidades sociais básicas e são imprescindíveis para a segurança e manutenção de instalações e equipamentos. De entre estes serviços referem-se, nomeadamente, os transportes públicos.
No caso presente, a completa paralisação dos serviços ferroviários de passageiros atinge obviamente necessidades básicas da população que assim, em particular no que se refere aos serviços suburbanos nas duas grandes áreas metropolitanas do país, se vê privada do único meio de transporte público para se deslocar. As alternativas rodoviárias que possam ser implementadas como forma de minimizar os efeitos desta paralisação nunca serão suficientes para responder às necessidades: enquanto um comboio suburbano pode transportar cerca de 900 passageiros, o autocarro usual não ultrapassa os 80 passageiros. Isto é, por cada comboio suprimido seria necessário providenciar mais de 10 autocarros para assegurar a mesma oferta. Mesmo que isso fosse possível, onde estão os autocarros necessários para fazer esse serviço?
Sabendo-se que nos períodos de ponta a taxa de ocupação dos comboios se aproxima, ou excede, a capacidade dos comboios, e a sua substituição por autocarros não é exequível, é evidente que a supressão do serviço ferroviário impede na prática a realização das deslocações da população afetada. Está por isso em causa a satisfação de uma necessidade social que justifica decretar “serviços mínimos”.
Como conciliar então esta evidência com o direito à greve e o evitar de situações que são percebidas como podendo pôr em causa a segurança dos utentes? Esse objetivo só me parece possível de alcançar distribuindo de forma assimétrica os “serviços mínimos”. Isto é, a supressão da oferta relativa aos comboios do serviço suburbano deverá concentrar-se fora das pontas de tráfego, atingindo desse modo sobretudo as deslocações não obrigatórias (as que não são por motivo de emprego ou de ensino), mantendo a oferta nos períodos de ponta tão próxima do normal quanto possível. Por outro lado, se mesmo assim subsistirem eventuais problemas de segurança, então é porque os “serviços mínimos” foram mal definidos e devem ser recalculados em função da procura.
Questão bem diferente é a que se relaciona com os serviços dos comboios Alfa, intercidades e regionais. Nestes casos, o argumento evocado no que se refere a problemas de segurança dos utentes não se coloca. Não só porque a procura é muito menor, como o acesso ao transporte está associado à prévia obtenção de um título de transporte ou à marcação de lugar, sendo por isso possível adequar a procura à oferta que se disponibiliza durante a greve. Não se justifica por isso não decretar “serviços mínimos” para este tipo de comboios. Ao não distinguir os diferentes serviços ferroviários afetados pela greve, tratando-os todos de igual modo, o tribunal arbitral desconheceu a realidade do que estava em causa e cometeu um erro de apreciação, prejudicando utilizadores muito para além dos efeitos da própria greve.