Deve haver um nome técnico para esta síndrome cinematográfica. O principal sintoma é isto de revermos cenas de filmes de Nanni Moretti dentro da cabeça, perante o que vamos vendo acontecer. À frente da infantilização crescente da sociedade ocidental, podemos lembrar-nos de Moretti agarrado a uma cabine telefónica, a imitar sons e mais sons de animais, só para conseguir que a criança da casa lhe passasse a chamada aos adultos. Nos últimos tempos, revejo sem querer uma cena do filme autobiográfico “Abril”. Nesse momento do filme, Nanni Moretti olha com estupefação para um televisor, durante a transmissão de um debate televisivo entre líderes políticos. Apesar de não poder ser ouvido por quem debate em estúdio, Moretti grita de casa para o líder de centro-esquerda Massimo D’Alema, que continua sem reagir perante as barbaridades ditas pelo empresário e líder populista de direita Silvio Berlusconi. Uma das frases que Moretti grita em italiano a D’Alema é esta: “Diz uma coisa de esquerda”.
Por cá, não nos podemos queixar das capacidades discursivas das actuais lideranças dos principais partidos de esquerda. Mesmo na presença de líderes populistas de direita. Mesmo junto a jornalistas mais interessados em espremer as polémicas do momento. Todos conseguem dizer uma ou duas ou mesmo até três coisas de esquerda. O principal problema é posterior. Conseguirão pôr em prática o que vão defendendo, dentro ou fora de campanhas eleitorais?
Já experimentei um bocado. E decido sem mágoas, nisto de pôr a cruzinha no sítio certo. Entre eleições presidenciais, legislativas, europeias e autárquicas, votei até agora em candidaturas individuais de esquerda e em todos os partidos da esquerda parlamentar. Mais ou menos cedo, arrependi-me muitas vezes. Seria ainda pior se não tivesse votado, é essa a minha única defesa. Posso estar indeciso até ao último momento, posso manter-me sem certezas de me ter decidido bem. Mas pelo menos vou contribuindo para a presença de ideias de esquerda na Assembleia da República e noutros palcos da democracia representativa.
Agora, vejam lá se fazem alguma coisa de esquerda.
Apesar das muitas diferenças que nos distinguem, que tal procurarem os pontos em comum que possam unir diferentes partidos, movimentos e pessoas de esquerda? Quando voltar a haver uma maioria de esquerda na Assembleia da República, servirá para vermos acontecer o quê? Podemos contar com uma estratégia comum para responder a algum dos problemas sociais que mais preocupam grande parte da população? Conseguem concordar pelo menos na existência de um problema e numa forma de o resolver?
Vamos lá, preparem-se para fazer uma coisa de esquerda.