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Foto: João M Almeida
Foto: João M Almeida

Em busca do poder de compra perdido

O Índice de Preços no Consumidor é o referencial usado nas negociações salariais e na atualização das pensões e de outros apoios sociais. Se o indicador subestima o aumento do custo de vida, leva a aumentos mais baixos do que os que seriam necessários para compensar a subida dos preços.

A inflação deixou de ocupar os telejornais, mas não saiu da nossa vida. Apesar da taxa de inflação já ter voltado aos valores a que nos habituámos, a subida dos preços e o custo de vida são, a par da saúde, as principais preocupações dos portugueses, de acordo com o último Eurobarómetro do Parlamento Europeu. O preço do azeite ou dos ovos e o custo da habitação continuam a ser problemas que preocupam a maioria das pessoas.
Quando se discute o impacto da inflação na vida das pessoas, discute-se o poder de compra e a evolução dos salários “reais”, isto é, o aumento dos salários descontando a inflação. Podemos receber um aumento e passar a ver um valor mais alto no recibo de vencimento, mas se os preços dos produtos que costumamos consumir estiverem a aumentar, isso não significa que consigamos comprar mais quantidades – por outras palavras, podemos não ganhar poder de compra.
Em Portugal, o salário médio real registou uma quebra de 4% em 2022, quando a inflação atingiu o pico, mas a tendência inverteu-se depois: subiu 2,3% em 2023 e 3,8% em 2024. Estes dados foram referidos tanto pelo governo anterior como pelo atual, que os apresentaram como um sinal de melhoria das condições de vida e de sucesso da política económica. Na análise económica, a tendência tem sido a de considerar que as pessoas estão confusas e não têm capacidade de avaliar se o seu salário está a acompanhar os preços na economia – algo a que os economistas chamam “ilusão monetária”. No entanto, há motivos para pensar que a forma como medimos a inflação pode não corresponder à evolução do custo de vida real.

Como medimos o custo de vida?

É preciso começar por perceber o que é que medimos quando medimos a inflação. O indicador usado para medir a inflação é o Índice de Preços no Consumidor (IPC), que é construído com base num cabaz de consumo médio: um cabaz que procura representar, em média, quanto é que as pessoas gastam do seu orçamento em cada tipo de produto ou serviço. Partindo desse cabaz, as autoridades estatísticas recolhem informação sobre os preços de inúmeras variedades de cada tipo de produto ou serviço, desde fruta, arroz e carne ou peixe a roupa, eletrodomésticos, pacotes de telecomunicações, etc.
Para calcular a evolução média dos preços – a taxa de inflação da economia –, o que se faz é atribuir um peso a cada um destes produtos que procura espelhar o peso que, em média, têm no consumo das famílias. Imaginemos que, num dado ano, os iates passam a custar o triplo. Embora se trate de um grande aumento de preço, a esmagadora maioria das pessoas não os adquire normalmente, pelo que não terá grande expressão no indicador da inflação. Variações nos preços da comida, por outro lado, têm um impacto muito maior, porque fazem parte do consumo da maioria das famílias.
Este cálculo é útil, mas tem limitações que o impedem de captar dinâmicas relevantes sobre o poder de compra. O principal problema é que, quando nos focamos demasiado na média, podemos acabar por subestimar as diferenças que existem na sociedade. No caso do custo de vida, há duas dimensões que fazem com que a mesma taxa de inflação signifique experiências muito diferentes para pessoas diferentes: o nível de rendimento e a relação com a habitação.

Quem paga o quê?

O “cabaz médio” usado para medir a inflação não tem em conta que os padrões de consumo são diferentes consoante o escalão de rendimento das pessoas. Isto é importante porque nem todos os preços sobem ao mesmo ritmo e algumas subidas de preços afetam mais uns grupos do que outros.
Normalmente, as pessoas com menos rendimentos gastam uma percentagem maior do seu salário em produtos essenciais – energia, alimentos, etc. Foi precisamente nos bens essenciais que se registaram os maiores aumentos de preços. Em 2022, no início do surto inflacionista, a inflação foi de 7,8%, mas os preços da energia aumentaram 23,7% e os alimentos aumentaram 12,2%. Nos anos seguintes, a tendência atenuou-se, mas não se inverteu. O impacto pesa mais na carteira de quem gasta uma percentagem maior do seu rendimento nos bens essenciais.

Variação acumulada dos preços em Portugal (jan 2021 – dez 2024)
Índice: jan. 2021 = 100
Fonte: Eurostat

Além de ser verdade que nem todos os preços sobem ao mesmo ritmo, mesmo dentro do mesmo produto, nem todas as categorias encarecem ao mesmo ritmo. Imaginemos o exemplo do leite: a estatística diz que o preço do leite aumentou, por exemplo, 10% num ano; no entanto, quando vamos ao supermercado, não há apenas uma categoria de leite, mas sim várias marcas diferentes. Na maioria dos produtos, existem marcas de fabricante, mais caras, e a marca branca, normalmente mais barata.
Isto é relevante porque, nos últimos anos, há dados que sugerem que houve subidas mais acentuadas dos preços nas categorias que eram mais baratas à partida – um fenómeno denominado cheapflation. Uma análise recente do Banco de Portugal, que confirma este fenómeno nos supermercados nacionais, concluiu que a maior diferença foi registada em produtos como a carne, peixe, leite, queijo e ovos. Ou seja, alimentos que fazem parte do pequeno-almoço, almoço e jantar da maioria das pessoas.

Variação dos preços online de alimentos em Portugal
Índice: jan. 2022 = 100
Fonte: Banco de Portugal

Novamente, esta tendência tende a penalizar quem ganha menos: quem tem salários mais altos pode deixar de consumir produtos mais caros e trocá-los pelo equivalente da marca branca para se proteger do impacto da inflação, enquanto quem ganha menos, à partida, já tende a escolher os produtos mais baratos. Ao representar a evolução média dos preços na economia, o IPC não oferece informação sobre a variância dos preços – ou seja, sobre quais os produtos (ou as marcas) que estão a encarecer mais do que os outros.

Ter casa custa

A segunda dimensão, particularmente relevante nos últimos anos, é a da habitação. Em relação à habitação, a maioria das pessoas encontra-se numa de três situações: ou têm casa própria e já a pagaram, ou têm casa e estão a pagar o empréstimo, ou arrendam. No caso dos dois últimos, a prestação paga ao banco ou a renda paga ao senhorio são muitas vezes a principal despesa do mês.
Seria de esperar que esta despesa fosse particularmente relevante para o cálculo da inflação. Contudo, o cabaz do IPC não inclui a despesa com prestações. Quando a prestação aumenta, esse aumento do custo não entra para o indicador da inflação, mesmo que represente um aumento muito significativo do custo de vida. E embora se inclua uma categoria que corresponde às rendas das casas, esta tem um peso muito pequeno em Portugal: o IPC assume que a despesa com a renda, a água, a eletricidade e o gás ronda apenas 10% do orçamento familiar. Isto acontece porque a percentagem de pessoas que arrenda casa é reduzida (22,2%) face à de quem tem casa própria (77,8%) e, por isso, não paga renda.
Este aspeto tem implicações bastante relevantes para a forma como se mede o impacto dos preços da habitação. No caso de quem arrenda, a despesa com a renda costuma ter um peso muito maior do que aquele que é assumido no cálculo do IPC. E, no caso de quem tem casa própria e a está a pagar, quando uma subida das taxas de juro leva a um aumento das prestações dos empréstimos com taxas variáveis (que representam cerca de 90% dos créditos em Portugal, um dos valores mais altos da Europa), este não é refletido no índice usado para medir a inflação.
Ao não incorporar os custos associados às taxas de juro, o IPC não permite avaliar o impacto da política monetária na carteira das pessoas. O custo do crédito é uma componente essencial do custo de vida. Na verdade, a prestação da casa é, para uma parte significativa das pessoas, a principal despesa do mês e um dos principais fatores que definem o seu custo de vida. Desde 2021, a prestação média para aquisição de habitação em Portugal aumentou 80%, passando de menos de €250 para mais de €440.Não é possível avaliar o poder de compra das pessoas sem ter em conta este custo.

Inflação vs. subida das prestações da casa
Índice: jan. 2021 = 100
Fonte: Eurostat e INE

As limitações do indicador da inflação estão longe de ser meros detalhes técnicos. Na verdade, têm um impacto significativo na nossa vida: o IPC é o referencial usado nas negociações salariais entre empresas e sindicatos e na atualização das pensões e de outros apoios sociais. Se o indicador subestima o aumento do custo de vida, leva a aumentos mais baixos do que os que seriam necessários para compensar a subida dos preços. A forma como medimos a inflação pode ajudar a explicar a discrepância entre as estatísticas e a experiência de boa parte das pessoas, para quem a crise da habitação está a agravar significativamente o custo de vida e a deixar cada vez menos rendimento disponível no fim do mês. Portugal foi o país da OCDE onde o fosso entre os salários e os preços das casas mais aumentou na última década. Não é de estranhar que o custo de vida não tenha saído do topo das preocupações das pessoas. Estranho é achar que estão simplesmente erradas, sem procurar perceber os motivos.

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